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Education by Stone Page 2
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a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
The Lesson of Poetry
1
The whole morning spent
like a motionless sun
before the blank page:
beginning of the world, new moon.
You could no longer trace
so much as a line;
not one name, not one flower
bloomed in the table’s summer,
not even in the bright midday
purchased daily in the form
of paper, which can accept
any kind of world.
2
All night long the poet
at his desk, trying to save
from death the monsters
germinated in his inkwell.
Monsters, animals, phantoms
of words — meandering,
urinating over the paper,
smearing it with their lead.
Pencil lead, the lead
of obsessions, lead
of dead emotions, lead
consumed in dreams.
3
White struggle on the paper
which the poet avoids,
white struggle of blood
flowing from his saltwater veins.
The physics of fear discerned
in daily gestures; fear
of things that never rest and yet
are immobile — unstill still lifes.
And the twenty words collected
in the saltwater of the poet,
to be used by the poet
in his efficient machine.
Always the same twenty words
he knows so well: how they work,
their evaporation, their density
less than the air’s.
from
Psicologia da composição / Psychology of Composition
1947
Psicologia da Composição
II
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.
VI
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.
VII
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.
É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza
da palavra escrita.
Psychology of Composition
II
The blank page
won’t let me dream;
it incites me to clear
and exact poetry.
I take refuge
on this pristine shore
where nothing exists
for night to fall on.
Without any night,
all fountains cease;
without any fountain,
there is no flight;
without any flight,
nothing recalls the flowing
of my time, in the wind
wherein time blows.
VI
Not the form found
like a seashell, lost
among sands as limp
as hair;
not the form obtained
by a lucky or divine throw,
by shooting at glass rabbits
of the invisible;
but the form attained
like the end of a skein
which the spider
of careful attention
unrolls; like the furthest
point of that fragile thread,
inevitably snapped
by the weight of huge hands.
VII
Mineral
the paper used
for poetry, the poetry
it is possible not to write.
Mineral
the flowers and plants,
fruits and animals,
when in the state of words.
Mineral
the distant horizon,
our names, all things
made of words.
Mineral
the book, any book, because
the written word is mineral,
mineral the cold nature
of the written word.
Antiode
(contra a poesia dita profunda)
A
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.
Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie
extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.
Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.
B
Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais
circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis
de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
— pudor de flor —
por seu tão delicado
pudor de flor
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)
Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas
da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto
e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
— cristais de vômito.
C
Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?
(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite.)
Fome de vida? Fome
de morte, freqüentação
da morte, como de
a
lgum cinema.
O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.
Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colete da lembrança.
Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-
cultura? Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;
e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases; e a morna
espera de que se
apodreça em poema,
prévia exalação
da alma defunta.
D
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude — em
disfarçados urinóis.)
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido
se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.
E
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras
palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.
Antiode
(against so-called profound poetry)
A
Poetry, I wrote you
flower! knowing
you are feces
like any other feces,
generating mushrooms
(rare, delicate mush-
rooms) in the damp
heat of our mouths.
Squeamish, I wrote
flower! (Are mushrooms
flowers? Curious
species, extinct
species of flower,
not entirely flower
but still flower, a blister
opening on ripeness.)
Squeamish, I avoided
the poem’s dung,
its stem, its ovary,
its intestinations.
I waited for pure
transparent flowerings
born, like a breeze,
in the air, of the air.
B
Later I discovered
that it was all right
to call you flower!
(Because of your similar
circumstances? Your
soft substances? Your
gentle hues? Because
of the virtuous gardens
of images you evoke?
Because a verse, like
a flower, is modest,
so delicately modest
with its flowerish
modesty that it only
opens when forgotten
by the gardener’s sleep?)
Later I discovered
that it was all right
to call you flower!
(flower, image of
two points, like
a chord). Later
I discovered
the flower’s two points,
the two mouths
of the image
of the flower: the mouth
that eats the deceased
and the mouth that adorns
the deceased with another
deceased, with flowers
— crystals of vomit.
C
How not invoke
the vice of poetry —
the body that numbs
in the air of verses?
(In the air of dead
waters, injecting
into the day’s flesh
the night’s infection.)
Thirst for life? Thirst
for death, attending
death as one
attends a movie.
The day? Arid.
So let the night come
with sleep. So let
the flower come.
Let the poem come, easier
and more portable
in memory, flower
in the vest of remembrance.
How not invoke,
above all, the practice
of the poem, its method,
its languid horti-
culture? There are
seasons for the poem
as for the flower, as
for love between dogs;
and a thousand tedious
grafts, a thousand ways
to arouse black
ecstasies; and the tepid
waiting for these
to rot into a poem,
precocious emanation
of the deceased soul.
D
Poetry, this is not
the sense in which
I still write you
flower! (I write
flower! Not a
flower, nor that
flower of virtue — in
dissembled urinals.)
Flower is the word
flower, verse
inscribed in verse,
like mornings in time.
Flower is the leap
of a bird into flight,
the leap out of slumber
when its tissue
is broken — an explosion
made to work
like a machine,
a vase of flowers.
E
Poetry, now I write
you feces, the living
feces you are.
I know you are
other words, words
impossible in poems.
That’s why I write
feces, a light word,
counting on its
brevity. I write you
spit, plain spit,
just as much spit
as the third
(how use it in
a poem?) the third
theological virtue.
O cão sem plumas /
The Dog without Feathers
1950
O cão sem plumas
1
(Paisagem do Capibaribe)
§A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
§O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
§Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
§Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
§Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
r /> que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
§Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
§Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
§E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
§Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
§Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
§Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
§Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
§(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa.)
§Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
§Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
II
(Paisagem do Capibaribe)
§Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
§Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama plantadas em ilhas
coaguladas na lama;