- Home
- Joao Cabral de Melo Neto
Education by Stone Page 9
Education by Stone Read online
Page 9
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
On a Monument to Aspirin
Clearly the most practical of suns:
the sun in the form of an aspirin.
Easy to use, cheap and portable,
this succinct stone is always full
of sun since, being artificial,
its efficacy is not limited
to daytime — night does not nightly
banish it. Immune to meteorological
laws, this sun rises when needed
(always bringing a clear day with it):
shining brightly, it dries and bleaches
the soul’s sackcloth into midday linens.
*
The shape and the effect of an aspirin
lens converge; the clean finish
of this crystal, polished with emery
and repolished with files, prefigures
the climate it generates, and the Cartesian
nature of everything in that climate.
And since it is an internal lens,
for internal use, behind the retina,
the aspirin does not serve only
the eye but refocuses for the whole
body the surrounding obscurity,
bringing it back into clear view.
Habitar o tempo
Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.
2
E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.
Inhabiting Time
To avoid killing his time, he imagined:
living it while it’s in progress, live,
in the precision-instant when it passes,
like a needlepoint and yet accessible.
Living his time: by going to live
in a literal desert or a desert of porches —
deserted places that wouldn’t distract him
from living the needle of a single instant
to the full. Fully living it on the inside,
inhabiting it in the needle of each instant,
in each needle-instant, and inhabiting it
with all that inhabiting offers the inhabitant.
2
Back from inhabiting his time, he thought:
time in progress, live time, is empty,
and not only empty but also transparent,
so that the instant to be inhabited passes unseen.
Therefore: to avoid killing it, we have to kill it,
to kill time by filling it with things,
to live not in the desert but in the streets,
where people fill it up and kill it.
Since time goes by transparently
and only gains body and color by what’s in it
(whatever passed it and hasn’t all passed),
we can only inhabit it in the past, where it’s dead.
Para a feira do livro
Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.
*
Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
For the Book Fair
When leafed, the leaf of a book regains
the vegetable lassitude of green leaves,
and a book is leafed or loses its leaves
like the tree it came from, blown by the wind;
when leafed, the leaf of a book repeats
fricatives and labials of ancient winds,
and nothing feigns wind in the leaves of a tree
as well as wind in the leaves of a book.
And yet the leaf in the tree of the book,
more than mimicking, utters the wind;
its words move the voice, which is wind:
a gale that blows what is rotten away.
*
Silent whether closed or open,
including what shouts inside it; anonymous,
it shows only its spine when on the shelf,
which annuls all the spines in gray; modest,
it opens only when someone opens it,
unlike a hanging picture, which is open
all its life, and unlike music,
alive only while its lines are flying.
But despite this and despite its patience
(lets anyone, anywhere, read it), severe,
requiring that you dig in, interrogate it;
and even when open, closed: it never gives vent.
from
Museu de tudo / Catchall Museum
1975
A insónia de Monsieur Teste
Uma lucidez que tudo via,
como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele,
extrema, e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.
The Insomnia of Monsieur Teste
A lucidity which
sees everything,
as if by lamp- or daylight,
and which, at nightfall, turns on
behind the eyelids the tooth
of a sharp and skinless light,
extreme and serving for nothing:
a light so lucid it fools you
into thinking you can do everything.
W. H. Auden
(1905–1973)
Se morre da morte que ela quer.
É ela que escolhe seu estilo,
sem cogitar se a coisa que mata
rima com sua morte ou faz sentido.
Mas ela certo te respeitava,
de muito ler reler teus livros,
pois matou-te com a guilhotina,
fuzil limpo, do ataque cardíaco.
W. H. Auden
(1905–1973)
We die the death death decides.
Death itself selects its method,
without caring whether the weapon
fits or rhymes with the victim.
But death apparently respected you
after reading and rereading your stanzas,
for it killed you with the guillotine,
the clean gun of a heart attack.
O artista inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
The Unconfessing Artist
Doing this or that is useless.
Not doing anything is useless.
But between doing and not doing,
better the uselessness of doing.
But no, doing to forget
is what’s useless — no one should forget.
But one can do what’s useless knowing
it’s useless, and although knowing
it’s useless and that its sense
cannot in any way be sensed,
still do: for it is harder
than not doing, and hardly
will one be able to say
with more disdain or say
more plainly to the reader Nobody
that what was done was for nobody.
Catecismo de Berceo
1. Fazer com que a palavra leve
pese como a coisa que diga,
para o que isolá-la de entre
o folhudo em que se perdia.
2. Fazer com que a palavra frouxa
ao corpo de sua coisa adira:
fundi-la em coisa, espessa, sólida,
capaz de chocar com a contígua.
3. Não deixar que saliente fale:
sim, obrigá-la à disciplina
de proferir a fala anônima,
comum a todas de uma linha.
4. Nem deixar que a palavra flua
como rio que cresce sempre:
canalizar a água sem fim
noutras paralelas, latente.
Berceo’s Catechism
1. Make the light word weigh
as much as the thing it tells
by isolating it from among
all the leaves it was lost in.
2. Make the loose word adhere
to the body of its referent,
fusing it into a solid, dense thing,
able to clash with the one next to it.
3. Don’t let its speech stick out
but impose the discipline
of speaking anonymously —
just another word in the line.
4. And don’t let the word flow,
like a river that keeps growing,
but channel the endless water
into parallel, unseen streams.
As águas do Recife
Os dois
touros
1. O mar e os rios do Recife
são touros de índole distinta:
o mar estoura no arrecife,
o rio é um touro que rumina.
Quando o touro mar bate forte
nele há o medo de não ficar,
de ter saído, de estar fora,
de quem se recusa a ser mar.
E há no outro touro, o rio,
entre mangues, remansamente,
mil manhas para não partir:
anda e desanda, ainda, sempre.
Mas se são distintos na ação,
mesma é a razão de seu atuar:
tentam continuar a ser da água
de aquém do arrecife, antemar.
A queda
de braço
2. Eis por que dentro do Recife
as duas águas vivem lutando,
jogando de queda de braço
entre os muros dos cais urbanos.
A que é mar porque, obrigada,
saltou o quebra-mar do porto
vem, cada maré, desafiar
a água ainda rio para o jogo.
A água que remonta e a que desce
travam então uma queda de braço:
aplicadamente e em silêncio,
equilibradas por espaços.
Um certo instante estão imóveis,
nem maré alta nem baixa, ao par;
até que uma derruba e vence,
e ao vencer, perder: se exilar.
The Waters of Recife
The two
bulls
1. The sea and the rivers of Recife
are bulls with different temperaments:
the sea stampedes against the reef,
the river is a bull that ruminates.
The bull that is sea beats hard
because it escaped, it is free
and dreads being pulled back in;
it no longer wants to be sea.
Standing in coastal swamps,
the other bull, the river,
has a thousand tricks for lingering:
it starts and stops, over and over.
Although their actions are different,
their reason for acting is the same:
they try to continue as water
on the reef’s near side, before sea.
The arm
wrestle
2. That is why inside Recife
the two waters live in conflict,
engaging in a daily arm-wrestle
between the walls of the city docks.
The water that’s sea, forced
to jump the jetty of the port,
comes with each tide to challenge
the water that’s still river to fight.
One rising and the other falling,
the waters begin their arm-wrestle,
assiduously and in silence,
now gaining, now losing, by turns.
For a moment they stand off, immobile
— neither high nor low water, but tied —
until one of them finally prevails,
and in winning, loses: it is exiled.
A arquitetura da cana-de-açúcar
Os alpendres das casas-grandes,
de par em par abertos, anchos,
cordiais como a hora do almoço,
apesar disso não são francos.
O aberto alpendre acolhedor
no casarão sem acolhimento
tira a expressão amiga, amável,
do que é de fora e não de dentro:
dos lençóis de cana, tendidos,
postos ao sol até onde a vista,
e que lhe dão o sorriso aberto
que disfarça o que dentro é urtiga.
The
Architecture of Sugarcane
The porch of the manor house,
extending into the open air
and as cordial as lunch hour,
is not genuinely open-hearted.
The inviting porch of the mansion
(where no one is ever invited)
owes its friendly expression
to what is not inside:
to the white sheets of sugarcane
that wave in the sun, giving
the porch a welcome smile,
disguising the nettle within.
Rilke nos Novos Poemas
Preferir a pantera ao anjo,
condensar o vago em preciso:
nesse livro se inconfessou:
ainda se disse, mas sem vício.
Nele, dizendo-se de viés,
disse-se sempre, porém limpo;
incapaz de não se gozar,
disse-se, mas sem onanismo.
Rilke in New Poems
Replacing the angel with the panther
and making what was vague precise,
this was a book of unconfessions,
still telling, but not as a vice.
Here, by expressing at an angle,
he told his own self, yet kept clean.
Unable to resist consummation,
he told all, but without masturbation.
O autógrafo
Calma ao copiar estes versos
antigos: a mão já não treme
nem se inquieta; não é mais a asa
no vôo interrogante do poema.
A mão já não devora
tanto papel; nem se refreia
na letra miúda e desenhada
com que canalizar sua explosão.
O tempo do poema não há mais;
há seu espaço, esta pedra
indestrutível, imóvel, mesma:
e ao alcance da memória
até o desespero, o tédio.
The Autograph
Calmly the hand copies these
old verses, no longer restlessly
trembling, no longer the wing
in the poem’s searching flight.
The hand no longer devours
so much paper, nor forces
its explosion to fit
into tiny, florid letters.