Education by Stone Read online

Page 9


  que nada limita a funcionar de dia,

  que a noite não expulsa, cada noite,

  sol imune às leis de meteorologia,

  a toda hora em que se necessita dele

  levanta e vem (sempre num claro dia):

  acende, para secar a aniagem da alma,

  quará-la, em linhos de um meio-dia.

  *

  Convergem: a aparência e os efeitos

  da lente do comprimido de aspirina:

  o acabamento esmerado desse cristal,

  polido a esmeril e repolido a lima,

  prefigura o clima onde ele faz viver

  e o cartesiano de tudo nesse clima.

  De outro lado, porque lente interna,

  de uso interno, por detrás da retina,

  não serve exclusivamente para o olho

  a lente, ou o comprimido de aspirina:

  ela reenfoca, para o corpo inteiro,

  o borroso de ao redor, e o reafina.

  On a Monument to Aspirin

  Clearly the most practical of suns:

  the sun in the form of an aspirin.

  Easy to use, cheap and portable,

  this succinct stone is always full

  of sun since, being artificial,

  its efficacy is not limited

  to daytime — night does not nightly

  banish it. Immune to meteorological

  laws, this sun rises when needed

  (always bringing a clear day with it):

  shining brightly, it dries and bleaches

  the soul’s sackcloth into midday linens.

  *

  The shape and the effect of an aspirin

  lens converge; the clean finish

  of this crystal, polished with emery

  and repolished with files, prefigures

  the climate it generates, and the Cartesian

  nature of everything in that climate.

  And since it is an internal lens,

  for internal use, behind the retina,

  the aspirin does not serve only

  the eye but refocuses for the whole

  body the surrounding obscurity,

  bringing it back into clear view.

  Habitar o tempo

  Para não matar seu tempo, imaginou:

  vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;

  no instante finíssimo em que ocorre,

  em ponta de agulha e porém acessível;

  viver seu tempo: para o que ir viver

  num deserto literal ou de alpendres;

  em ermos, que não distraiam de viver

  a agulha de um só instante, plenamente.

  Plenamente: vivendo-o de dentro dele;

  habitá-lo na agulha de cada instante,

  em cada agulha instante: e habitar nele

  tudo o que habitar cede ao habitante.

  2

  E de volta de ir habitar seu tempo:

  ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;

  e como além de vazio, transparente,

  o instante a habitar passa invisível.

  Portanto: para não matá-lo, matá-lo;

  matar o tempo, enchendo-o de coisas;

  em vez do deserto, ir viver nas ruas

  onde o enchem e o matam as pessoas;

  pois como o tempo ocorre transparente

  e só ganha corpo e cor com seu miolo

  (o que não passou do que lhe passou),

  para habitá-lo: só no passado, morto.

  Inhabiting Time

  To avoid killing his time, he imagined:

  living it while it’s in progress, live,

  in the precision-instant when it passes,

  like a needlepoint and yet accessible.

  Living his time: by going to live

  in a literal desert or a desert of porches —

  deserted places that wouldn’t distract him

  from living the needle of a single instant

  to the full. Fully living it on the inside,

  inhabiting it in the needle of each instant,

  in each needle-instant, and inhabiting it

  with all that inhabiting offers the inhabitant.

  2

  Back from inhabiting his time, he thought:

  time in progress, live time, is empty,

  and not only empty but also transparent,

  so that the instant to be inhabited passes unseen.

  Therefore: to avoid killing it, we have to kill it,

  to kill time by filling it with things,

  to live not in the desert but in the streets,

  where people fill it up and kill it.

  Since time goes by transparently

  and only gains body and color by what’s in it

  (whatever passed it and hasn’t all passed),

  we can only inhabit it in the past, where it’s dead.

  Para a feira do livro

  Folheada, a folha de um livro retoma

  o lânguido e vegetal da folha folha,

  e um livro se folheia ou se desfolha

  como sob o vento a árvore que o doa;

  folheada, a folha de um livro repete

  fricativas e labiais de ventos antigos,

  e nada finge vento em folha de árvore

  melhor do que vento em folha de livro.

  Todavia a folha, na árvore do livro,

  mais do que imita o vento, profere-o:

  a palavra nela urge a voz que é vento,

  ou ventania varrendo o podre a zero.

  *

  Silencioso: quer fechado ou aberto,

  inclusive o que grita dentro; anônimo:

  só expõe o lombo, posto na estante,

  que apaga em pardo todos os lombos;

  modesto: só se abre se alguém o abre,

  e tanto oposto do quadro na parede,

  aberto a vida toda, quanto da música,

  viva apenas enquanto voam suas redes.

  Mas apesar disso e apesar de paciente

  (deixa-se ler onde queiram), severo:

  exige que lhe extraiam, o interroguem;

  e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

  For the Book Fair

  When leafed, the leaf of a book regains

  the vegetable lassitude of green leaves,

  and a book is leafed or loses its leaves

  like the tree it came from, blown by the wind;

  when leafed, the leaf of a book repeats

  fricatives and labials of ancient winds,

  and nothing feigns wind in the leaves of a tree

  as well as wind in the leaves of a book.

  And yet the leaf in the tree of the book,

  more than mimicking, utters the wind;

  its words move the voice, which is wind:

  a gale that blows what is rotten away.

  *

  Silent whether closed or open,

  including what shouts inside it; anonymous,

  it shows only its spine when on the shelf,

  which annuls all the spines in gray; modest,

  it opens only when someone opens it,

  unlike a hanging picture, which is open

  all its life, and unlike music,

  alive only while its lines are flying.

  But despite this and despite its patience

  (lets anyone, anywhere, read it), severe,

  requiring that you dig in, interrogate it;

  and even when open, closed: it never gives vent.

  from

  Museu de tudo / Catchall Museum

  1975

  A insónia de Monsieur Teste

  Uma lucidez que tudo via,

  como se à luz ou se de dia;

  e que, quando de noite, acende

  detrás das pálpebras o dente

  de uma luz ardida, sem pele,

  extrema, e que de nada serve:

  porém luz de uma tal lucidez

  que mente que tudo podeis.

  The Insomnia of Monsieur Teste

  A lucidity which
sees everything,

  as if by lamp- or daylight,

  and which, at nightfall, turns on

  behind the eyelids the tooth

  of a sharp and skinless light,

  extreme and serving for nothing:

  a light so lucid it fools you

  into thinking you can do everything.

  W. H. Auden

  (1905–1973)

  Se morre da morte que ela quer.

  É ela que escolhe seu estilo,

  sem cogitar se a coisa que mata

  rima com sua morte ou faz sentido.

  Mas ela certo te respeitava,

  de muito ler reler teus livros,

  pois matou-te com a guilhotina,

  fuzil limpo, do ataque cardíaco.

  W. H. Auden

  (1905–1973)

  We die the death death decides.

  Death itself selects its method,

  without caring whether the weapon

  fits or rhymes with the victim.

  But death apparently respected you

  after reading and rereading your stanzas,

  for it killed you with the guillotine,

  the clean gun of a heart attack.

  O artista inconfessável

  Fazer o que seja é inútil.

  Não fazer nada é inútil.

  Mas entre fazer e não fazer

  mais vale o inútil do fazer.

  Mas não, fazer para esquecer

  que é inútil: nunca o esquecer.

  Mas fazer o inútil sabendo

  que ele é inútil, e bem sabendo

  que é inútil e que seu sentido

  não será sequer pressentido,

  fazer: porque ele é mais difícil

  do que não fazer, e dificil-

  mente se poderá dizer

  com mais desdém, ou então dizer

  mais direto ao leitor Ninguém

  que o feito o foi para ninguém.

  The Unconfessing Artist

  Doing this or that is useless.

  Not doing anything is useless.

  But between doing and not doing,

  better the uselessness of doing.

  But no, doing to forget

  is what’s useless — no one should forget.

  But one can do what’s useless knowing

  it’s useless, and although knowing

  it’s useless and that its sense

  cannot in any way be sensed,

  still do: for it is harder

  than not doing, and hardly

  will one be able to say

  with more disdain or say

  more plainly to the reader Nobody

  that what was done was for nobody.

  Catecismo de Berceo

  1. Fazer com que a palavra leve

  pese como a coisa que diga,

  para o que isolá-la de entre

  o folhudo em que se perdia.

  2. Fazer com que a palavra frouxa

  ao corpo de sua coisa adira:

  fundi-la em coisa, espessa, sólida,

  capaz de chocar com a contígua.

  3. Não deixar que saliente fale:

  sim, obrigá-la à disciplina

  de proferir a fala anônima,

  comum a todas de uma linha.

  4. Nem deixar que a palavra flua

  como rio que cresce sempre:

  canalizar a água sem fim

  noutras paralelas, latente.

  Berceo’s Catechism

  1. Make the light word weigh

  as much as the thing it tells

  by isolating it from among

  all the leaves it was lost in.

  2. Make the loose word adhere

  to the body of its referent,

  fusing it into a solid, dense thing,

  able to clash with the one next to it.

  3. Don’t let its speech stick out

  but impose the discipline

  of speaking anonymously —

  just another word in the line.

  4. And don’t let the word flow,

  like a river that keeps growing,

  but channel the endless water

  into parallel, unseen streams.

  As águas do Recife

  Os dois

  touros

  1. O mar e os rios do Recife

  são touros de índole distinta:

  o mar estoura no arrecife,

  o rio é um touro que rumina.

  Quando o touro mar bate forte

  nele há o medo de não ficar,

  de ter saído, de estar fora,

  de quem se recusa a ser mar.

  E há no outro touro, o rio,

  entre mangues, remansamente,

  mil manhas para não partir:

  anda e desanda, ainda, sempre.

  Mas se são distintos na ação,

  mesma é a razão de seu atuar:

  tentam continuar a ser da água

  de aquém do arrecife, antemar.

  A queda

  de braço

  2. Eis por que dentro do Recife

  as duas águas vivem lutando,

  jogando de queda de braço

  entre os muros dos cais urbanos.

  A que é mar porque, obrigada,

  saltou o quebra-mar do porto

  vem, cada maré, desafiar

  a água ainda rio para o jogo.

  A água que remonta e a que desce

  travam então uma queda de braço:

  aplicadamente e em silêncio,

  equilibradas por espaços.

  Um certo instante estão imóveis,

  nem maré alta nem baixa, ao par;

  até que uma derruba e vence,

  e ao vencer, perder: se exilar.

  The Waters of Recife

  The two

  bulls

  1. The sea and the rivers of Recife

  are bulls with different temperaments:

  the sea stampedes against the reef,

  the river is a bull that ruminates.

  The bull that is sea beats hard

  because it escaped, it is free

  and dreads being pulled back in;

  it no longer wants to be sea.

  Standing in coastal swamps,

  the other bull, the river,

  has a thousand tricks for lingering:

  it starts and stops, over and over.

  Although their actions are different,

  their reason for acting is the same:

  they try to continue as water

  on the reef’s near side, before sea.

  The arm

  wrestle

  2. That is why inside Recife

  the two waters live in conflict,

  engaging in a daily arm-wrestle

  between the walls of the city docks.

  The water that’s sea, forced

  to jump the jetty of the port,

  comes with each tide to challenge

  the water that’s still river to fight.

  One rising and the other falling,

  the waters begin their arm-wrestle,

  assiduously and in silence,

  now gaining, now losing, by turns.

  For a moment they stand off, immobile

  — neither high nor low water, but tied —

  until one of them finally prevails,

  and in winning, loses: it is exiled.

  A arquitetura da cana-de-açúcar

  Os alpendres das casas-grandes,

  de par em par abertos, anchos,

  cordiais como a hora do almoço,

  apesar disso não são francos.

  O aberto alpendre acolhedor

  no casarão sem acolhimento

  tira a expressão amiga, amável,

  do que é de fora e não de dentro:

  dos lençóis de cana, tendidos,

  postos ao sol até onde a vista,

  e que lhe dão o sorriso aberto

  que disfarça o que dentro é urtiga.

  The
Architecture of Sugarcane

  The porch of the manor house,

  extending into the open air

  and as cordial as lunch hour,

  is not genuinely open-hearted.

  The inviting porch of the mansion

  (where no one is ever invited)

  owes its friendly expression

  to what is not inside:

  to the white sheets of sugarcane

  that wave in the sun, giving

  the porch a welcome smile,

  disguising the nettle within.

  Rilke nos Novos Poemas

  Preferir a pantera ao anjo,

  condensar o vago em preciso:

  nesse livro se inconfessou:

  ainda se disse, mas sem vício.

  Nele, dizendo-se de viés,

  disse-se sempre, porém limpo;

  incapaz de não se gozar,

  disse-se, mas sem onanismo.

  Rilke in New Poems

  Replacing the angel with the panther

  and making what was vague precise,

  this was a book of unconfessions,

  still telling, but not as a vice.

  Here, by expressing at an angle,

  he told his own self, yet kept clean.

  Unable to resist consummation,

  he told all, but without masturbation.

  O autógrafo

  Calma ao copiar estes versos

  antigos: a mão já não treme

  nem se inquieta; não é mais a asa

  no vôo interrogante do poema.

  A mão já não devora

  tanto papel; nem se refreia

  na letra miúda e desenhada

  com que canalizar sua explosão.

  O tempo do poema não há mais;

  há seu espaço, esta pedra

  indestrutível, imóvel, mesma:

  e ao alcance da memória

  até o desespero, o tédio.

  The Autograph

  Calmly the hand copies these

  old verses, no longer restlessly

  trembling, no longer the wing

  in the poem’s searching flight.

  The hand no longer devours

  so much paper, nor forces

  its explosion to fit

  into tiny, florid letters.