- Home
- Joao Cabral de Melo Neto
Education by Stone Page 10
Education by Stone Read online
Page 10
The time of the poem is over;
there is its space, this unmoving,
unbreaking, unchanging stone,
and within the reach of memory
even desperation, tedium.
Proust e seu livro
De certo o sabia, quem viveu
com a vida e a obra emaranhadas,
que viveu fazendo-as, refazendo-as,
elastecendo-a em tempo e páginas,
que vestiu sua obra, por dentro,
percorrendo-a, viajando em seu barco,
de certo viu que um dia acabá-la
era matar-se em livro, suicidá-lo.
Proust and His Book
He whose work and life
were inexorably entwined,
who lived to make and remake them,
stretching them in time and pages,
who wore his work inside himself,
exploring it, sailing in its ship,
must have known its final line
would spell a double suicide.
from
A escola das facas / The School of Knives
1980
Menino de engenho
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.
A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.
Plantation Boy
The cut sugar stalk is a sickle.
Cut at a sharp angle it gains
the whetted edge of the sickle
that cut it to a sickle: a mutual giving.
When I was a boy, the edge of a stalk
once cut and almost blinded me,
and a scar, which left no visible mark,
knew how to make its mark inside me.
Though I no longer have the scar,
what was inoculated is in me still;
I have never discovered
if it is a virus or vaccine.
Horácio
O bêbado cabal.
Quando nós, de meninos,
vivemos a doença
de criar passarinhos,
e as férias acabadas
o horrível outra-vez
do colégio nos pôs
na rotina de rês,
deixamos com Horácio
um dinheiro menino
que pudesse manter
em vida os passarinhos.
Poucos dias depois
as gaiolas sem língua
eram tumbas aéreas
de morte nordestina.
Horácio não comprara
alpiste; e tocar na água
gratuita, para os cochos,
certo lhe repugnava.
Gastou o que do alpiste
com o alpiste-cachaça,
alma do passarinho
que em suas veias cantava.
Horácio
The perfect drunk . . .
When we as children
went through the craze
of raising birds
and, vacation ended,
the here-we-go-again
of school had pulled us back
to the hated grindstone,
we left with Horácio
our childish savings,
enough to keep
alive the birds.
A few days later
the songless cages
were aerial graves
of Northeast death.
Horácio bought no seed,
and to refill dishes
with water that cost nothing
must have disgusted him.
He spent what was for birdseed
on alcoholic seed,
soul of the bird
which in his blood was singing.
A voz do canavial
Voz sem saliva da cigarra,
do papel seco que se amassa,
de quando se dobra o jornal:
assim canta o canavial,
ao vento que por suas folhas,
de navalha a navalha, soa,
vento que o dia e a noite toda
o folheia, e nele se esfola.
The Voice of the Canefield
Spitless voice of the cicada,
of dry crumpling paper,
of the newspaper when it folds:
so is the singing of the canefield
in the wind which through its leaves
from razor to razor breathes,
wind which all night and day
leafs through it and is flayed.
Forte de Orange, Itamaracá
A pedra bruta da guerra,
seu grão granítico, hirsuto,
foi toda sitiada por
erva-de-passarinho, musgo.
Junto da pedra que o tempo
rói, pingando como um pulso,
inroído, o metal canhão
parece eterno, absoluto.
Porém o pingar do tempo
pontual, penetra tudo;
se seu pulso não se sente,
bate sempre, e pontiagudo,
e a guerrilha vegetal
no seu infiltrar-se mudo,
conta com o tempo, suas gotas
contra o ferro inútil, viúvo.
E um dia os canhões de ferro,
sua tesão vã, dedos duros,
se renderão ante o tempo
e seu discurso, ou decurso:
ele fará, com seu pingo
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem,
se possuam, ferro e musgo.
Fort Orange, Itamaracá
The rough stone of war,
its rugged, granitic grain,
was besieged and overrun
by moss and mistletoe.
Next to the stone which time
erodes, beating like a pulse,
the uneroded cannon metal
seems eternal, absolute.
But the punctual trickling
of time penetrates all;
even if not felt, its pulse
continues its pointed beating,
and the vegetal guerrillas
can count on time’s trickle
in their silent infiltration
against the widowed iron.
And one day the hard fingers,
the cannons’ vain rigidity,
will also surrender to time
and its rhetoric, its regularity;
trickling, unheard and unchecked,
it will force them to embrace,
penetrate and possess
each other, iron and moss.
A voz do coqueiral
O coqueiral tem seu idioma:
não o de lâmina, é voz redonda:
é em curvas sua reza longa,
decerto aprendida das ondas,
cujo sotaque é o da sua fala,
côncava, curva, abaulada:
dicção do mar com que convive
na vida alísia do Recife.
The Voice of the Coconut Grove
The language of the coconut grove
is not of the blade but round:
in curves it voices its long prayer,
which it must have learned from the waves,
whose accent, like its speech,
is concave, curved, arched:
diction of the sea with which it lives
the wind-whipped life of Recife.
A escola das facas
O alísio ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.
Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas
,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada.
The School of Knives
On reaching the Northeast the trade wind
sweeps through coconut and cane fields;
coursing through the green blades,
it whets itself on cleavers, on daggers.
Flying over the fertile Mata,
its hands, which were round and female,
acquire the appetite and teeth of knives,
with which it flies over other regions.
The coconut tree and cane stalk teach it,
not with the grindstone but knife to knife,
how to fly through the Sertão backlands,
sharp hand drawn and ready to strike.
Barra do Sirinhaém
1
Se alguém se deixa, se deita,
numa praia do Nordeste,
ao sempre vento de leste,
mais que se deixa, se deita,
se se entrega inteiro ao mar,
se fecha o corpo, se isola
dentro da própria gaiola
e menos que existe, está;
se além disso a brisa alísia
que o mar sopra (ou sopra o mar)
faça com que o coqueiral
entoe sua única sílaba:
esse alguém pode que ouvisse,
assim cortado, e vazio,
no seu só estar-se, o assovio
do tempo a fluir, seu fluir-se.
2
Se alguém se deixa, se deita,
numa praia do Nordeste
ao sempre vento de leste;
mais que se deita, se deixa,
sente com o corpo que a terra
roda redonda em seu eixo,
pois que pode sentir mesmo
que as suas pernas se elevam,
que há um subir do horizonte,
que mais alto que a cabeça
seu corpo também se eleva,
vem sobre ele o mar mais longe.
Essas praias permitem
que o corpo sinta seu tempo,
o espaço no rodar lento,
sua vida como vertigem.
The Sandbank at Sirinhaém
1
If you let go and you lie down
under the steady eastern wind
of a beach in Northeast Brazil,
more than letting go, you lie;
if you give yourself up to the sea,
your body closes in, isolates
itself inside its own cage,
and less than existing, you are;
if furthermore the trade wind
stirred by the sea (or stirring it)
makes the coconut trees
intone their single syllable,
you may be able to hear,
in this detached and empty
state, just being, the whistling
of time flowing, your flowing.
2
If you let go and you lie down
under the steady eastern wind
of a beach in Northeast Brazil,
more than lying, you let go,
you feel with your body that
the Earth turns round your axis,
and you can even feel
that your legs are lifting,
that the horizon is rising,
that higher than your mind
your body also rises,
covered by the furthest sea.
These beaches make it possible
for the body to feel its time,
space in its slow turning,
your life as revolution.
A cana-de-açúcar menina
A cana-de-açúcar, tão pura,
se recusa, viva, a estar nua:
desde cedo, saias folhudas
milvestem-lhe a perna andaluza.
É tão andaluza em si mesma
que cresce promíscua e honesta:
cresce em noviça, sem carinhos,
sem flores, cantos, passarinhos.
Sugarcane Girl
Sugarcane is too virtuous
to be seen, alive, in the nude:
leafy skirts from a young age dress
and re-dress her Andalusian leg.
Because she is so Andalusian,
she grows up promiscuous and pure:
as a novice, without caresses,
without songs or birds or flowers.
A cana e o século dezoito
A cana-de-açúcar, tão mais velha,
que o século dezoito, é que o expressa.
A cana é pura enciclopedista,
no geométrico, no ser-de-dia,
na incapacidade de dar sombras,
mal-assombrados, coisas medonhas,
no gosto das várzeas ventiladas,
das cabeleiras bem penteadas,
de certa esbelteza linear,
porte incapaz de se desleixar,
e que vivendo em mares, anônima,
nunca se entremela como as ondas:
mas guardam a elegância pessoal,
postura e compostura formal,
muito embora exposta à devassada
luz sem pudor, sem muros, de várzea.
Sugarcane and the Eighteenth Century
Much older than the eighteenth century,
sugarcane can tell its history.
Sugarcane is a pure encyclopedist
in its fondness for daytime and geometry,
in its refusal to make shadows,
frightful things, phantoms,
in its taste for lowlands well aired,
for well-combed heads of hair,
for a certain linear grace,
a bearing that’s never careless;
and living by the sea it remains
anonymous, never making waves.
But it has an elegance all its own,
a sense of proportion, a formal pose,
despite its exposure to the wide-open,
unwalled, shameless light of the lowlands.
from
Agrestes / Rough & Rude
1985
O nada que é
Um canavial tem a extensão
ante a qual todo metro é vão.
Tem o escancarado do mar
que existe para desafiar
que números e seus afins
possam prendê-lo nos seus sins.
Ante um canavial a medida
métrica é de todo esquecida,
porque embora todo povoado
povoa-o o pleno anonimato
que dá esse efeito singular:
de um nada prenhe como o mar.
The Nothing That Is
A sugarcane field is so vast
that all measures of it are vain.
It has the sea’s unending
wide-openness, defying
numbers and their ilk
to trap it in their assertions.
In the canefield one forgets
to measure anything at all,
for although it is populous,
its population is anonymous,
making it resemble a pregnancy
of nothingness, like the sea’s.
Bancos & catedrais
Quando de carro comigo
por Sevilha, Andaluzia,
passando por cada igreja,
recolhida, te benzias.
Pela larga Andaluzia
ninguém se engana de igreja:
amplas paredes caiadas
com portais pardos, de pedra.
Contudo, quando comigo
pela Vila de Madrid
notei que tu te benzias
passando o que, para ti,
lembrava vulto de igreja.
O que era monumental
fazia-te imaginar:
eis mais outra catedral.
Sem querer, não te enganavas:
se não eram catedrais
eram matrizes de bancos,
o verbo de onde as filiais.
Só erravas pela metade
benzendo-te em frente a bancos;
quem sabe foram construídos
para lucrar desse engano?
Banks & Cathedrals
Traveling with me by car
through Seville, in Andalusia,
before every church we passed
you quietly crossed yourself.
Nowhere in Andalusia
could a church ever be mistaken;
all have broad, whitewashed walls
with doorways of gray stone.
But when we were in the city
Madrid, I noticed you still
crossed yourself each time
we passed what to your mind
recalled the form of a church.
The monumental features
made you think immediately:
ah! another cathedral.
You were not far off the mark,
for although not cathedrals
they were central banks,
the Word from which the branches.
You were only half in error
to cross yourself before banks.
Weren’t they built in the first place
to profit from that mistake?
Homenagem renovada a Marianne Moore
Cruzando desertos de frio
que a pouca poesia não ousa,
chegou ao extremo da poesia
quem caminhou, no verso, em prosa.
E então mostrou, sem pregação,
com a razão de sua obra pouca,
que a poesia não é de dentro,
que é como casa, que é de fora;
que embora se viva de dentro
se há de construir, que é uma coisa
que quem faz faz para fazer-se
— muleta para a perna coxa.
Renewed Homage to Marianne Moore
Crossing deserts of coldness
which slight poetry will not risk,
she who walked through verse
in prose arrived at poetry’s limit.
She was able to show, without preaching,
by the reason of her spare work,